Como a Índia Dominou o Xadrez?
Até os anos 1970, o Brasil não perdia em nada para o xadrez indiano. Na realidade, estávamos muito à frente daquela que hoje é uma superpotência. Algo aconteceu para isso mudar. Muitos atribuem a Anand, mas temos que voltar um pouco antes.
Os Primórdios:
A Índia de meados do século 20 era um país agrário e subdesenvolvido, que conquistou sua independência das garras dos ingleses apenas em 1947. O xadrez, em sua versão europeia, basicamente não existia. A maior parte do país jogava o Chaturanga, versão originária do xadrez, sendo praticado sob várias versões diferentes.
Manuel Aaron é o grande popularizador do xadrez, em sua versão internacional, na Índia. Nascido em Tamil, em 1935, ele se tornou o primeiro MI da história da Índia em 1960, venceu 9 vezes o campeonato nacional e jogou 3 Olimpíadas. Além de seus feitos no tabuleiro, tornou-se presidente da Federação Indiana de Xadrez, além de secretário da associação de xadrez do estado de Tamil.
Entre 1960 e 1980, Aaron foi a força motriz do xadrez indiano. Ajudou a fundar o Tal Chess Club, que seria peça importante dessa história, além do Chess Mate, a primeira revista de xadrez da Índia. Foi criada uma premiação para jogadores que se tornassem MI ou GM, o que foi requisitado apenas em 1978, por Ravikumar Vaidyanathan. Nessa época, um jovem garoto estava começando a frequentar o Tal Chess Club, um jovem chamado Anand.
Era Anand:
Você deve se perguntar por que um clube de xadrez na Índia leva o nome de Mikhail Tal, e não foi uma homenagem qualquer.
O clube foi fundado em 1972 por Manuel Aaron. Na época, ele estava aprendendo russo para traduzir livros para inglês e para a língua tâmil, já que quase ninguém no país tinha acesso a qualquer material de estudo. Havia uma colaboração entre a Índia e a URSS na parte esportiva, e foi uma sugestão dos soviéticos a criação de um clube de xadrez no Centro Russo de Ciência e Cultura em Chennai (esse é o nome atual). O clube recebeu o nome de Tal Chess Club, escolhido pelo próprio Aaron, em homenagem ao seu jogador soviético favorito.
Foi neste clube que Viswanathan Anand começou a jogar xadrez de forma sistemática. Aprendendo as regras do esporte graças à sua mãe, passou a frequentar o Tal Chess Club com apenas 6 anos. Foi jogando horas, quase que diariamente neste clube, que o "garoto-relâmpago", como foi apelidado, foi forjado.
A ascensão de Anand foi meteórica. Em 1985, virou MI, o mais novo da história do país, e já tinha vencido 2 vezes o Continental Asiático. Apenas 2 anos depois, ele venceu o Mundial Júnior e, em 1988, tornou-se o primeiro GM do país.
Em 1982, a Índia tinha 32 jogadores com rating FIDE. Em 1990, esse número já havia saltado para 111 (claro que o número de jogadores era muito maior, já que havia um rating mínimo para ser listado na FIDE). Nesse mesmo ano, nas Olimpíadas, ocorreu um histórico Brasil vs. Índia, onde nossa equipe foi derrotada por 4 a 0, um resultado inimaginável 20 anos antes.
Em 1991, Dibyendu Barua tornou-se o segundo GM da Índia. Ele havia vencido Korchnoi em 1982, com apenas 16 anos, e foi, de certa forma, um rival nacional de Anand. Já o terceiro GM indiano veio em 1997, Praveen Mahadeo Thipsay. Nessa época, o Tigre de Madras já fazia parte da elite mundial, tendo vencido muitos dos grandes torneios de elite e lutando pelo título máximo. Ele se tornou Campeão Mundial FIDE em 2000 e, de forma indiscutível, em 2007.
No começo do século 21, a Índia começou a produzir novos MIs e GMs anualmente. Foram 7 GMs apenas entre 2000 e 2003, com nomes como Pentala Harikrishna e Koneru Humpy, a primeira mulher a se tornar GM no país.
O ritmo aumentaria ainda mais. O país passou a formar GMs numa velocidade impressionante: em 2009, chegaram a 20 GMs; em 2013, a 30 GMs; 40 GMs em 2016; 50 GMs em 2017. Agora, em 2024, já contam com 85 GMs.
2024: História sendo feita
A URSS dominou o xadrez durante a sua existência, mas hoje esse papel pertence à Índia. Em 2024, aconteceram as Olimpíadas de Xadrez em Budapeste. Até então, a Índia coletivamente tinha apenas um bronze em 2014 e outro em 2022 na seção aberta, além de um bronze na seção feminina em 2022.
Durante as Olimpíadas de 2024, a Índia conquistou um duplo ouro: tanto a equipe absoluta quanto a equipe feminina venceram as Olimpíadas, um feito que apenas a URSS e a China haviam conseguido antes.
Mas o ano ainda não tinha acabado. Gukesh D, vencedor do Torneio de Candidatos, derrotou Ding Liren, tornando-se, no dia de hoje, o Campeão Mundial mais novo da história do xadrez e o segundo indiano a alcançar esse feito, após Anand.
Causas do Sucesso:
Bom, já contei a história da ascensão indiana, essa será um resumo do que causou isso:
1: Manuel Aaron teve papel fundamental em trazer o xadrez internacional para a Índia, conquistou patrocinadores para a Federação Indiana, materiais de estudo, fundou um clube de xadrez.
2: Anand inspirou milhões. Após seu sucesso, o xadrez foi colocado como matéria escolar na região de Tamil, onde dezenas de milhões de crianças aprenderam a jogar. Foi um dos professores diretamente de vários prodígios.
3: Ter muitos GMs no país faz com que eles treinem muitos jovens, em especial GM RB Ramesh, que treinou Gukesh, Pragg, Vaishali e outros talentos.
4: A Índia plantava batatas em 1950, mas pousou na Lua em 2024, se tornando uma potência econômica em todas as esferas, inclusive esportivamente. O país passou a ter muito mais dinheiro. Todos os torneios pagam quantias significativas. Recentemente, um pacote de 8 milhões de dólares foi anunciado, patrocinando o top 10 absoluto e feminino, para construção de centros de treinamento e custear jovens. Além disso, empresas também patrocinam muitos jogadores.
5: Mais do que um site, o ChessBase Índia é uma plataforma de mídia que divulga o xadrez indiano em todos os seus níveis, não só a "elite". Além da divulgação, eles captam recursos para a HelpChess, que patrocina jogadores talentosos de origem humilde na Índia. São muito mais que um site de xadrez qualquer.
Conclusão:
A índia colheu o que plantou 60 anos atrás, os títulos Olímpicos, o domínio do top 10 e título mundial do Gukesh, são conquistas individuais, mas também coletivas, vindas de investimento árduo que só estão começando, novas conquistas virão, em todos os níveis, em todas as competições. Em resumo, o xadrez indiano é fruto de um lance calculado por décadas.
Fontes e Referências:
Manuel Aaron: https://en.chessbase.com/post/manuel-aaron-the-trailblazer-of-indian-chess
Tal Chess Club: https://www.chessbase.in/news/The-history-of-the-famous-Tal-Chess-Club?srsltid=AfmBOorlj-y61_Zf685CSSlYrIXGem_o42n9D2_8bQykAZjjcC7j5Nwe
Ascensão do xadrez na índia: https://www.chessbase.in/news/The-rise-of-chess-in-India?srsltid=AfmBOoqqO-3DtFDfeDuX7ZYvdlayZNbnrg5FPZireebgrWg9twMM5dlN
Impacto do Anand: https://www.espn.in/chess/story/_/id/38303895/37-years-how-world-changed-viswanathan-anand-stayed-constant-top-indian-chess-d-gukesh
Noticia do investimento massivo: https://indianexpress.com/article/sports/chess/indian-chess-blueprint-aicf-rs-65-crore-budget-popularise-sport-9308175/
Notas: Eu sei que a índia possuí história com xadrez antes de sua independência, não considerei esse período.
A carreira do Anand foi extremamente reduzida pois terá um artigo apenas sobre ele.