Artigos
Entrevista com Ding Liren: "Eu Não Quero Ser Famoso"
Ding Liren. Foto: Maria Emelianova/Chess.com.

Entrevista com Ding Liren: "Eu Não Quero Ser Famoso"

DavidC2
| 89 | Jogadores de Xadrez

Ding Liren, o atual número três do mundo e o jogador chinês mais forte da história, conversa com David Cox sobre a ascensão dos homens no xadrez em seu país, sua notável sequência de 100 partidas invictas e a dificuldade de manter um relacionamento enquanto joga xadrez de elite.

Natural da cidade costeira de Wenzhou e filho de um engenheiro elétrico e uma enfermeira, Ding Liren nunca imaginou que seria o jogador chinês mais forte da história.

Não surpreende que Wenzhou tenha produzido um super talento. A cidade é uma meca do xadrez, cidade natal da campeã mundial Zhu Chen.

Apesar de um começo promissor em sua carreira, com dois títulos mundiais juvenis e inúmeras vitórias nos torneios juniores mais prestigiados da China, Ding demorou muito tempo para se convencer de que poderia viver de sua paixão pelo xadrez. Foi assim que ele se formou em Direito na Universidade de Pequim.

Nos últimos três anos, Ding mostrou ser um dos jogadores com maior probabilidade de desafiar Magnus Carlsen pelo título de campeão mundial, chegando à final das duas últimas Copas do Mundo de Xadrez, quebrando a barreira dos 2800 e vencendo Carlsen no desempate do Sinquefield Cup de 2019.

Ding Liren.
Ding Liren. Foto: Maria Emelianova / Chess.com.

Conhecido por seus nervos de aço e semblante calmo diante do tabuleiro, Ding é um dos jogadores mais difíceis do mundo a ser derrotado, registrando uma sequência invicta de 100 partidas de agosto de 2017 a novembro de 2018.

A entrevista foi realizada por telefone e o texto pode ter sido editado para maior clareza ou extensão.

Chess.com: Vimos um grande boom no xadrez chinês nos últimos 10 anos. O Candidatos do próximo ano terá dois jogadores chineses pela primeira vez na história, você e Wang Hao. O que impulsionou esse boom de xadrez no Oriente?

Ding Liren: O xadrez é muito popular na China agora, principalmente entre crianças e estudantes. Acredito que é muito por causa dos programas escolares, dos resultados que tivemos em importantes campeonatos por equipes e das muitas campeãs mundiais - jogadoras como Hou Yifan, Tan Zhongyi e Ju Wenjun, que chegaram ao topo. E a equipe masculina que venceu as Olimpíadas e o Campeonato Mundial por Equipes nos últimos anos. Essas vitórias receberam muita atenção da mídia e cada vez mais pais estão matriculando seus filhos em um clube de xadrez. 

Mas devo dizer que o xadrez ainda não é tão popular quanto o Go ou o Xiangqi (xadrez chinês) no momento. Go é o jogo mais popular na China. Está profundamente enraizado na filosofia chinesa, e o match recente entre Ke Jie e AlphaGo o tornou mais popular do que nunca.

Então, como você começou a jogar xadrez em vez de se tornar um jogador de elite de Go?

Em 1995, houve um match famoso em Wenzhou entre Xie Jun, a primeira campeã mundial da China, e Viktor Korchnoi. Após este match, Wenzhou recebeu o título de "cidade do xadrez" na China, então criou-se um clima favorável naquele momento para aprender o jogo. Depois disso, quando eu tinha quatro anos, fui enviado para um clube de xadrez e tive muita sorte de ter o mesmo treinador, Chen Lixing, que havia ajudado a transformar Zhu Chen em uma das melhores jogadoras.

Falando em Xie Jun e Zhu Chen, a China sempre teve jogadores masculinos muito fortes, mas, historicamente, são as mulheres que se destacam no mais alto nível. Foi só recentemente que os homens entraram no top 20 do mundo com você, Yu Yangyi e Wang Hao. Porquê?

Antes de tudo, deve-se notar que nossa atual equipe feminina é ainda mais forte do que no passado. Elas venceram as duas últimas Olimpíadas! Mas a equipe masculina também tem jogadores promissores, como Wei Yi. Este pequeno atraso é devido a uma tradição antiga: há vinte anos, esperava-se que os melhores jogadores chineses, como Ye Jiangchuan e Xu Jun, treinassem as mulheres. Durantes os torneios, eles eram responsáveis pela preparação das aberturas para elas. Hoje, todo mundo trabalha sozinho. Se as mulheres querem melhorar seu jogo, precisam contratar e pagar um treinador.

Quando você sentiu pela primeira vez que poderia ser um jogador profissional de xadrez?

Eu decidi seguir carreira profissional em 2009, quando tinha 16 ou 17 anos. Antes disso, obtive bons resultados nos juvenis contra jogadores da minha idade. Por exemplo, na China, temos um torneio muito famoso chamado Copa Li Chengzhi, que é como o campeonato juvenil chinês, mas nunca tive o mesmo nível de resultados contra oponentes de todas as idades.

Então, em 2009, eu ganhei o campeonato chinês, vencendo contra jogadores como Wang Hao, que tinha 200 pontos a mais do que eu, e a qualidade das partidas era muito alta. Mais tarde naquele ano, li uma entrevista com Peter Leko, que disse que estava me assistindo e que minhas partidas o inspiraram. Isso me deu muita confiança, então tenho que agradecer a ele.

Em algum momento você já se preocupou em não ganhar dinheiro suficiente jogando xadrez profissionalmente?

Não, porque na época eu não via o que mais eu poderia fazer além de jogar xadrez. Eu era muito bom em matemática na escola, mas depois dos meus estudos, percebi que a literatura me interessava muito mais.

Por que você estudou direito e não literatura?

Eu não me arrependo de ter feito direito. Quer dizer, depois de ter feito, agora eu sei o que quero e o que gosto. Mas se eu pudesse escolher novamente, não faria essa graduação. A literatura chinesa é o meu hobby, mas talvez se eu tivesse que estudar e passar horas todos os dias trabalhando nisso, eu perderia meu interesse. Leio livros por diversão e para relaxar. Não gosto de me sentir obrigado a analisar um texto.

Ding Liren. Photo: Maria Emelianova / Chess.com.
Ding Liren. Foto: Maria Emelianova / Chess.com.

Quem são seus escritores favoritos da língua inglesa?

Provavelmente o escritor americano de contos Raymond Carver - eu li vários dos seus livros. Eu também gosto muito do escritor japonês Haruki Murakami; ele foi indicado várias vezes ao Prêmio Nobel. Um dos seus livros mais famosos é Norwegian Wood.

No passado, você disse que hobbies como o seu amor pela literatura o ajudam a relaxar em meio à pressão do xadrez de elite. Como você lida com a pressão durante os principais torneios?

Antes de cada partida, sinto um pouco de estresse, principalmente quando enfrento jogadores fortes. Mas quando estou bem preparado, muitas vezes me sinto bem relaxado durante a partida. É raro eu sentir emoções fortes, geralmente consigo ficar muito calmo. E para isso, o sono é essencial. Quando eu tenho uma boa noite de sono antes da partida, eu fico de bom humor. Quando estou cansado, a minha cabeça não funciona direito e bebo muita água e café enquanto jogo e faço um esforço extra para calcular bem e manter o foco. Mas nem sempre é fácil, especialmente quando você não está em boa forma.

Quão importante é a sua capacidade de ler a linguagem corporal do seu oponente durante a partida?

Às vezes isso influencia o meu jogo. Alguns jogadores se mostram muito confiantes. Eles se levantam após cada lance e seus gestos indicam que está tudo sob controle. Quando uma jogada me surpreende, às vezes fico menos confiante e mais influenciado pelo meu oponente. Às vezes, isso muda minhas decisões e minha avaliação da posição. Este é um ponto em que estou tentando trabalhar para não deixar acontecer muito.

Em 2018, você foi o primeiro jogador chinês na história a participar do torneio de Candidatos. Isso colocou você sob alguma pressão?

Sim, a mídia chinesa cobriu o evento com matérias sobre cada rodada. Muitas pessoas foram comentar as publicações, mas poucas realmente entenderam as partidas. Eu tento não ler muito os comentários. Minha mãe me acompanhou ao torneio. Ela às vezes cozinhava para mim, e isso foi algo que me ajudou muito a lidar com aquela experiência.

Ouvi dizer que sua mãe cuidava de todos os seus ganhos com o xadrez. Ainda é assim?

Eu ainda moro com meus pais, e o dinheiro que ganho sempre vai diretamente para a conta bancária dela. Quando eu quero gastar, ela me dá, é claro. Mas não estou realmente interessado em dinheiro no momento. Não preciso de muito dinheiro para o dia a dia.

Eu imagino que a comida dela ajudou muito durante o torneio de Candidatos, porque eu li que você e outros jogadores às vezes costumam se contentar com macarrão instantâneo durante os torneios! Você não tem interesse em experimentar a comida local?

É verdade! Geralmente, o almoço antes de uma partida, comemos algo muito simples para ter mais tempo para relaxar. E, depois da partida, normalmente queremos retornar ao hotel o mais rápido possível. É somente após o torneio, quando finalmente estamos livres, que às vezes saímos para experimentar um pouco da gastronomia local.

Agora você é o número três do mundo e é um dos favoritos para ganhar o Torneio de Candidatos de 2020. Você está recebendo muita atenção em seu país?

Eu realmente não sei dizer. Na China, não usamos muito Twitter ou Facebook e não sou muito ativo no Weibo. Muitos jogadores famosos do Go têm contas VIP no Weibo, mas eu só tenho uma conta normal e com algumas pessoas me seguindo. Estou bem assim. Eu não quero ser tão famoso, que as pessoas escrevam sobre mim todos os dias ou entrevistado após cada torneio. Quero ter minha própria vida e ter algum tempo para mim.

A fama tem um preço. É claro que ganharia mais dinheiro se me tornasse mais conhecido e talvez teria um status social melhor, mas também não teria tempo para mim e toda a imprensa estaria na minha cola ao menor passo em falso.

Ding Liren. Photo: Maria Emelianova / Chess.com.
Ding Liren. Foto: Maria Emelianova / Chess.com.

Falando da vida simples na China, você já pensou em sair da casa de seus pais e viver por conta própria?

Eu acho que talvez isso aconteça quando eu estiver em um relacionamento estável com uma mulher. Eu não tenho nenhuma vontade de morar sozinho. Às vezes vou visitar os meus avós. Eles moram muito próximos e, quando meus pais estão trabalhando, eu passo um tempo com eles.

Na cultura chinesa, você geralmente deixa seus pais apenas quando se casa ou fica noivo. Então você tem que ter um relacionamento estável.

A vida de um jogador profissional de xadrez dificulta manter um relacionamento?

Sim, sem dúvida. É um problema estar tão distante a maior parte do ano. Especialmente este ano, joguei muitos torneios. Eu passei o mês de junho toda na Europa. É difícil encontrar alguém que aceite esse estilo de vida. Meu último relacionamento terminou no final do ano passado, e provavelmente as viagens constantes foram uma das razões.

Eu imagino que para chegar ao topo é preciso muita determinação. Conte-nos sobre sua notável série invicta de 100 partidas. O que o torna tão difícil de derrotar, e como conseguiu manter o foco para permanecer invicto por tanto tempo?

Para ser sincero, não estou tão preocupado com esse tipo de coisa. Eu acho que todos os jogadores fortes apenas se concentram no próprio xadrez. A mídia perguntará sobre o recorde porque você completou 99 jogos sem perder, mas eu tento não pensar muito sobre isso. Mas o recorde foi bastante estranho, especialmente com empates em 13 das 14 partidas no Candidatos. Muitos delas tiveram altos e baixos, e eu estava quase perdido em três ou quatro, e quase vencendo em outras três ou quatro também. Mas todo mundo nesse nível odeia perder. Eles farão de tudo para impedir a derrota, tentarão todos os recursos para salvar sua posição.

Como você se sentiu quando Maxime Vachier-Lagrave terminou sua série de invencibilidade em novembro de 2018? Você ficou desapontado por não ter conseguido quebrar o recorde de Sergei Tiviakov com 110 partidas invictas? [Nota do editor: Após a entrevista, Magnus Carlsen quebrou o recorde de Tiviakov.]

Como não perdia uma partida clássica há tanto tempo, não estava acostumado a perder. Geralmente, quando perco uma partida, fico muito triste e não quero conversar. Eu me isolo para pensar no que aconteceu, nos erros que cometi... Qual foi a ideia errada? Mas depois de entender onde eu errei, me sinto normal de novo. Eu sabia que Tiviakov tinha a maior sequência invicta, mas talvez haja algum jogador desconhecido por aí que ficou ainda mais tempo sem perder e ninguém prestou atenção. Como a série dele não foi conseguida no mais alto nível, acho que esse recorde não é tão importante.

O que você acha do xadrez online? Mais e mais jogadores estão participando de eventos como o Speed Chess Championship ou o Titled Tuesday no Chess.com. Você gosta dessas competições?

Não muito. Às vezes, antes de um blitz ou torneio rápido, eu jogo blitz online. Mas, geralmente, não jogo muito na internet. Acho que às vezes isso afeta sua capacidade no xadrez. Quando você se acostuma a jogar sem pensar, avalia menos as posições clássicas e fica mais difícil encontrar o lance certo sobre o tabuleiro.

Finalmente, dada a sua ascensão ao longo dos últimos anos, você acredita que pode se tornar Campeão Mundial? Você é capaz de vencer Carlsen?

Eu acho que talvez tenhamos que esperar Magnus envelhecer! Eu não posso derrotá-lo. Ele está no topo e ninguém pode vencê-lo. Se ele não estiver em sua melhor forma à medida que envelhece, talvez tenhamos alguma chance. Mas, para ser honesto, mesmo que eu nunca tenha a chance de disputar um match pelo título mundial, eu já estaria muito feliz, porque o que eu vivo hoje excede todos os meus sonhos. Ao me tornar o jogador chinês mais forte da história, já superei todas as minhas expectativas!

Mais de DavidC2
Vishy Anand: "É um choque quando você percebe que as pessoas o vêem como veterano."

Vishy Anand: "É um choque quando você percebe que as pessoas o vêem como veterano."

Entrevista com Vidit Gujrathi: "Eu esperava que o Candidatos fosse ser adiado"

Entrevista com Vidit Gujrathi: "Eu esperava que o Candidatos fosse ser adiado"